quarta-feira, 7 de setembro de 2016




O Encantamento que se Foi Quiçá num Carro de Boi.
J. Norinaldo.



Pare por um momento, feche os olhos e imagine uma Vila encantada, cheia de belezas simples como meninos descalços brincando alegremente na praça por desconhecerem os dissabores da vida, ou até viver alguns, mas que a alegria contagiante da brincadeira inocente os fazia esquecer tudo; assim como num conto de fadas ou nas histórias contadas pelos mais velhos, com castelos e princesas, como se o mundo se resumisse aquela Vila, aquela Praça; e de repente todos param, pois de algum lugar vinha uma voz também encantada, que dizia coisas que ninguém entendia, mas sentia a emoção e a beleza de uma canção. Da Farmácia no centro da Rua na parte de baixo, entre luzes também encantadas, pois eram as primeiras luzes fosforescentes que eu e quiçá todos aqueles meninos descalços e felizes tinham visto. Aquela voz maravilhosa cantando Unforgettable, hoje eu sei que era, e até conheço a letra; quantos anos depois? 60 anos? Nat King Kole se foi, o menino descalço conseguiu sapatos e caminhou para bem longe da sua Vila encantada, que na verdade também mudou, na mente daquele menino, porém não mudou nada. Hoje, longe da Vila e da Praça, da graça de ter 9 anos, quando os desenganos são apenas fantasias; quando me apaixonava por uma menina e nem lembro se tinha seios porque só lhe via o rosto; e hoje o tempo malvado apagou sua imagem da minha mente. Trocaria todos os meus sapatos, as voltas que dei no mundo chegando no mesmo lugar para ouvir novamente, Nelson Gonçalves cantando daquela Farmácia, “ A Deusa do Asfalto” e tantas outras; quando balançando os pés descalços, parávamos qualquer brincadeira para ouvir aquele som que nos penetrava a inocente alma e nos levava a sonhar com o muito pouco que conhecíamos. A farmácia de Zé Aguiar era assim que chamávamos, na verdade o Sr. José Aguiar, filho de uma família tradicional daquela Vila encanta. Será que tudo aquilo me restou apenas à saudade, à dor de ter visitado na última vez que ai estive a maioria daqueles meninos descalços no cemitério da hoje cidade de Cachoeirinha? Quiçá a partir dali Do som que vinha como uma onda e penetrava nossos ouvidos único momento em que existia silêncio entre nós; tenha nascido em mim algo que se enraizou e que muito tem me feito sofrer, o bom gosto não só musical, mas um bom gosto em geral; será por isto que não aceito e teimo em ver Cachoeirinha como era? Seria um crime abominar o progresso que a transformou e que inclusive derrubou a Farmácia que curava as dores do corpo com as meizinhas modernas e as da alma belas melodias? 60 anos depois, depois de ter visto ao vivo Frank Sinatra cantando Let Me Try Again, uma das minhas prediletas melodias, eu ainda choro ao me lembrar dos sons que vinham da Farmácia de Zé Aguar? Dizem que antes da morte nos passa rapidamente um filme retratando tudo que vivemos; será muito triste se aquele rosto aparecer nesse filme, tanto tempo depois; mas na verdade também já não acredito mais nisto, porque até o cinema acabou. O Cinema do seu Eriberto, depois D. Maria, Maninho...O Metro, o Idelmar,  Alhambra, e tantos outros que conheci pela mundo. Escrevi este texto ouvindo Nelson Gonçalves,  Nat King Cole e Frank Sinatra e lembrando cada um daqueles meninos descalços, tanto os que visitei no Cemitério quanto aqueles que nunca mais tive notícias, a não ser em sonhos que me machucam a alma. Outro dia eu discutia com uma moça que colocava uns sacos de lixo no local onde ia estacionar o carro, quando alguém de dentro da loja gritou: O que está acontecendo ai? E a moça respondeu: É um velho que está criando caso porque estou colocando o lixo aqui! Tomei um tremendo susto. Não! Eu não sou velho, faz tão pouco tempo que eu brincava na Praça do comércio em Cachoeirinha; parece até que ainda ouço o som que sai da Farmácia de Zé Aguiar; ela só pode estar falando de4 outra pessoa. Não! Era de mim mesmo, a patroa saiu e me reconheceu me pediu desculpas pelo transtorno, mandou que a moça retirasse o lixo imediatamente e perguntou: você não sabe quem é este senhor? Mas não a repreendeu pelo velho; sai dali não ouvindo mais som nenhum, nem da minha própria voz, pois não lembro se disse algo.