O Encantamento que se Foi Quiçá
num Carro de Boi.
J. Norinaldo.
Pare por um momento, feche os
olhos e imagine uma Vila encantada, cheia de belezas simples como meninos
descalços brincando alegremente na praça por desconhecerem os dissabores da
vida, ou até viver alguns, mas que a alegria contagiante da brincadeira
inocente os fazia esquecer tudo; assim como num conto de fadas ou nas histórias
contadas pelos mais velhos, com castelos e princesas, como se o mundo se
resumisse aquela Vila, aquela Praça; e de repente todos param, pois de algum
lugar vinha uma voz também encantada, que dizia coisas que ninguém entendia,
mas sentia a emoção e a beleza de uma canção. Da Farmácia no centro da Rua na
parte de baixo, entre luzes também encantadas, pois eram as primeiras luzes
fosforescentes que eu e quiçá todos aqueles meninos descalços e felizes tinham
visto. Aquela voz maravilhosa cantando Unforgettable, hoje eu sei que era, e
até conheço a letra; quantos anos depois? 60 anos? Nat King Kole se foi, o
menino descalço conseguiu sapatos e caminhou para bem longe da sua Vila
encantada, que na verdade também mudou, na mente daquele menino, porém não
mudou nada. Hoje, longe da Vila e da Praça, da graça de ter 9 anos, quando os
desenganos são apenas fantasias; quando me apaixonava por uma menina e nem
lembro se tinha seios porque só lhe via o rosto; e hoje o tempo malvado apagou
sua imagem da minha mente. Trocaria todos os meus sapatos, as voltas que dei no
mundo chegando no mesmo lugar para ouvir novamente, Nelson Gonçalves cantando daquela
Farmácia, “ A Deusa do Asfalto” e tantas outras; quando balançando os pés
descalços, parávamos qualquer brincadeira para ouvir aquele som que nos
penetrava a inocente alma e nos levava a sonhar com o muito pouco que
conhecíamos. A farmácia de Zé Aguiar era assim que chamávamos, na verdade o Sr.
José Aguiar, filho de uma família tradicional daquela Vila encanta. Será que
tudo aquilo me restou apenas à saudade, à dor de ter visitado na última vez que
ai estive a maioria daqueles meninos descalços no cemitério da hoje cidade de
Cachoeirinha? Quiçá a partir dali Do som que vinha como uma onda e penetrava
nossos ouvidos único momento em que existia silêncio entre nós; tenha nascido
em mim algo que se enraizou e que muito tem me feito sofrer, o bom gosto não só
musical, mas um bom gosto em geral; será por isto que não aceito e teimo em ver
Cachoeirinha como era? Seria um crime abominar o progresso que a transformou e
que inclusive derrubou a Farmácia que curava as dores do corpo com as meizinhas
modernas e as da alma belas melodias? 60 anos depois, depois de ter visto ao
vivo Frank Sinatra cantando Let Me Try Again, uma das minhas prediletas
melodias, eu ainda choro ao me lembrar dos sons que vinham da Farmácia de Zé
Aguar? Dizem que antes da morte nos passa rapidamente um filme retratando tudo
que vivemos; será muito triste se aquele rosto aparecer nesse filme, tanto
tempo depois; mas na verdade também já não acredito mais nisto, porque até o
cinema acabou. O Cinema do seu Eriberto, depois D. Maria, Maninho...O Metro, o
Idelmar, Alhambra, e tantos outros que
conheci pela mundo. Escrevi este texto ouvindo Nelson Gonçalves, Nat King Cole e Frank Sinatra e lembrando cada
um daqueles meninos descalços, tanto os que visitei no Cemitério quanto aqueles
que nunca mais tive notícias, a não ser em sonhos que me machucam a alma. Outro
dia eu discutia com uma moça que colocava uns sacos de lixo no local onde ia
estacionar o carro, quando alguém de dentro da loja gritou: O que está
acontecendo ai? E a moça respondeu: É um velho que está criando caso porque
estou colocando o lixo aqui! Tomei um tremendo susto. Não! Eu não sou velho,
faz tão pouco tempo que eu brincava na Praça do comércio em Cachoeirinha;
parece até que ainda ouço o som que sai da Farmácia de Zé Aguiar; ela só pode
estar falando de4 outra pessoa. Não! Era de mim mesmo, a patroa saiu e me reconheceu
me pediu desculpas pelo transtorno, mandou que a moça retirasse o lixo
imediatamente e perguntou: você não sabe quem é este senhor? Mas não a
repreendeu pelo velho; sai dali não ouvindo mais som nenhum, nem da minha própria
voz, pois não lembro se disse algo.
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