Da arte do desamar
A literatura literária, psicológica e até mística, tem largo acervo sobre a arte de amar, teoremas e sugestões, conselhos e dicas sobre a incrivelmente prazerosa, arte do amar.
No entanto, há um silêncio sobre a arte do desamar. Talvez porque não existam formulas e cada história é única. Não acredito. Ainda quando piá, menina feliz a explorar um mundo (pampas gaúchos), lembro-me da sensação de empinar pipas. E lembro-me da angústia que sentia quando uma pandorga se soltava de minhas mãos, na ânsia de querer fazer uma acrobacia mais ousada ou simplesmente distração. Corria atrás dela, não aceitava que tinha se ido, pulava muros, subia em telhados e quando alguma vez resgatava a pandorga, dilacerava meu coração ver que ela já não era mais a mesma; rasgões, hastes quebradas. Então a levava pra casa e tentava deixa-la como antes, mas invariavelmente não conseguia.
Penso que foi nessa época que comecei a aprender a difícil arte do desamor.
Um dia, quando percebi que tinha perdido a pipa, olhei pro céu e vibrei com sua liberdade, acompanhei somente com olhar, sem correr atrás, a trajetória que fazia ao léu, livre de mim, senti que não era tão ruim assim, consolava-me saber que outra criança a resgatasse ( inclusive vim aprender depois que era uma brincadeira interessante encontrar pipas por acaso de outros piás, uma competição entre as crianças) e também consolava-me saber que eu iria ter outra pipa. Também nessa época, eu já mais graúda, ganhei de um amiguinho ( que dizia ser meu namorado), um rouxinol. Joãozinho trouxe-me a ave numa gaiola comum. Estava feliz porque o havia capturado pra mim e essa foi sua forma de provar seu amor infantil. Agradeci e fiquei na varanda de casa, eu e o rouxinol. Ele na gaiola, inquieto, eu na minha gaiola de tristeza (eu j? nesse tempo havia provado o sabor que nenhuma criança deveria provar: O da solidão). Pensei feliz, agora tenho um amiguinho que não me abandonará. Então o levei pra meu quarto, coloquei a gaiola junto a janela, pra que ele pudesse ver a beleza dos campos, os girassóis do quintal, a videira que nesse tempo estava cheia de seus frutos doces. Queria o ver feliz. No armazém comprei alpiste, e coloquei água. Os dias se passavam, mas meu rouxinol cantava poucas vezes, geralmente pela manha, ainda na aurora. Depois, silencio e agitação. Então sem que nada me preparasse pra minha atitude, peguei a gaiola e fui pros fundos do quintal, junto a uma jabuticabeira frondosa. Sentei a sua sombra e colocando a gaiola no colo, abri vagarosamente a portinhola; lembro-me que tinha esperança que o rouxinol não saísse que quisesse ficar, ou que ao menos relutasse. Mas, quando viu a liberdade saiu tão rápido que só pude perceber o vento que suas asas agitadas na ânsia do voo, fizeram. E tal como as pandorgas, fiquei lá tentando ver pra onde voava meu querido rouxinol. Quis lhe agradecer pelos dias que estivera comigo, quis lhe dizer do quanto tinha sido importante ter finalmente alguém pra compartilhar (sim porque não disse que conversava a noite com ele, contava das minhas façanhas de menina, das minhas saudades, de minhas tristezas), mas não tive tempo... Nesse instante foi que pensei que nunca o tinha tocado...o mais próximo que houvera conseguido fora aquele quase roçar de asas. E assim ele alçou um lindo voo em direção ao horizonte.
Senti as lágrimas rolarem, mas elas desembocaram em lábios que sorriam. Senti que pela primeira vez desde que o conhecera que ele estava feliz. Fiquei algum tempo ali entre as fruteiras, sentindo uma presença que hoje sei, seria minha companheira pro resto da vida: A solidão. Então aconteceu algo inusitado. Ouvi um canto de rouxinol, junto a mim. Procurei e o encontrei entre os galhos da jabuticabeira, ele viera se despedir. Dei-lhe adeus e ele se foi, pra sempre. Em casa, transformei a gaiola numa casinha de bonecas. Não quereria que servisse de prisão pra mais outro ser. Ah, a difícil e poética arte do deixar partir, do desapegar-se, do desamar!
Ainda hoje pratico essa arte, vez em quando um rouxinol me aparece, ou uma pandorga.
O ego quer que fique, a vaidade também.
Mas o amor, esse diz:
Deixa ir... Se voltar é porque você lhe pertence e ele a ti. Até hoje nunca voltaram...
Piá Montenegro(Anamélcia Tavares)
Apesar da inexperiencia em postar, uma cronica que nos leva muito longe, a pensar no que parece apenas um conto de mulher que foi criança; fortes revelações, mas discordo no Desamor, no desapego sim, mas o atoe em si é de puro amor, dar liberdade mesmo que isto venha momentaneamente lhe causar certa tristeza pela incompreensão que o preço desta felicidade é justamente a castração da liberdade de outrem; ou seja um felicidade em troca de uma infelicidade. Parabéns, pela crônica e pelos atos.
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